24 de nov. de 2011

Gil no palco

O texto e a caricatura a seguir saíram em julho de 2004, num jornal de humor chamado Rio. Lembrei do texto quando vi que o Dia do Música seria comemorado nessa semana. Quem tiver preguiça de ler muitos caracteres, pode se retirar do recinto, que aqui a prosa é longa. Mais por conta da verve do personagem principal.


Vem meu irmão e me dá um recado.
- Não vai no Engenho, não. ELE não vem!

Bem que o pessoal de Piracicaba queria. A visita estava anunciada com certa antecedência. As homenagens musicais, agendadas. Os discursos, prontinhos. E o imprevisto... dando as caras. Fazendo com que o ministro da Cultura não desse as caras na data marcada, 17 de junho de 2004.

Adiou-se sua visita ao Engenho Central, o anúncio de benefícios federais ao Salão Internacional de Humor de Piracicaba, a posse do novo Conselho Municipal de Cultura. Ele tinha compromissos. Em São Paulo e em Rio Claro.

Mas a expectativa dos presentes no barracão 7B do Engenho Central, espaço cultural à margem do Rio Piracicaba, não se frustrou. Já era o dia seguinte.

E o ministro veio. Acompanhado das inevitáveis autoridades municipais e estaduais. Acompanhado de uma multidão de fãs, com as respectivas máquinas fotográficas e caderninhos de autógrafos.

Peraí. Estamos falando de um ministro mesmo...?

Estamos, sim. Só que o ministro em questão se chama Gilberto Gil. Ex-revolucionário musical do Tropicalismo, com Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat, Mutantes. Atual músico sessentão, de carreira sólida no Brasil, ícone da chamada MPB.

Enfim, ele dá as caras em Piracicaba, em meio a uma movimentada agenda, na região e na capital paulista. Fóruns culturais solicitam sua presença. O público quer ver o ministro ao vivo, sem pagar ingresso. Aqui e lá.

No barracão próximo à Ponte Pênsil que dá acesso ao Engenho Central, os funcionários da secretaria de cultura local já sabem: Gil chegará atrasado. Seu almoço no restaurante Mirante, próximo ao famoso Rio de Piracicaba cantado por Tião Carreiro, atrasou um pouco a chegada ao Engenho. Alguém do almoço diz: "Ele até deu uma canja pra nós!" Nada estranho, em se tratando de um restaurante.

Uma hora de atraso, e chega a comitiva oficial com o ministro a tiracolo. Mais por conta do alvoroço de imprensa, que cerca Gilberto Gil com seus flashes, câmeras, bloquinhos e perguntas. Que ficam pra depois. Grande, o fuzuê.

Feitos os discursos dos prefeitos de Piracicaba e Rio Claro e do secretário de cultura de Piracicaba, duas apresentações musicais acontecem. A primeira traz o Hino Nacional executado por um grupo da tradicional Escola de Música de Piracicaba, que leva o nome do respeitado maestro Ernst Mahle. Gil apura os ouvidos para a formação de metais do conjunto.

Na segunda apresentação, um grupo de crianças apresenta uma congada, com o acompanhamento luxuoso de violeiros locais. As roupas dos músicos e da molecada remetem à festa do Divino Espírito Santo, que deixou de acontecer em muitos lugares, mas em Piracicaba ainda existe. E resiste.

E chega a hora de Gil soltar o verbo. Durante os agradecimentos de praxe, dá um tapa com luva de pelica na imprensa, que barra a visão do respeitável público à mesa. "A mídia são os meios de comunicação, que levam as nossas imagens, são as nossas janelas para o mundo, mas que já tiveram bastante tempo aqui, agora podem ficar ao lado, em pé de igualdade com as outras pessoas..." E o público aplaude.

O ministro relembra seus laços anteriores com Piracicaba. Em 1973, fez um show no Teatro São José. Na breve passagem pela cidade, um músico de sua banda acabou envolvido com uma "jovem piracicabana", que juntou seus trapinhos aos do rapaz. Após separar-se, ela ficou no Rio de Janeiro, onde envolveu-se com outro músico e teve um filho com ele. E o filho tornou-se músico, que atualmente toca com Preta Gil, filho do ministro. "Ainda que eu não quisesse, a natureza e a cultura quiseram que eu estivesse ligado a Piracicaba".

Após pedir a presença, junto à mesa das autoridades, das pessoas que formariam o novo Conselho Municipal de Cultura, Gil tece loas ao Engenho Central, ao Salão Internacional de Humor, à Paixão de Cristo, ao projeto do Museu da Ciência e Tecnologia. Ali, a retórica tropicalista entra em ação.

"Ciência, tecnologia, formas de expressão, linguagens, formas afetivas, formais vivenciais, tudo isso é cultura. Vocês estão aqui com um equipamento de primeira ordem, ao mesmo tempo tradição, memória, herança cultural e material, nas suas paredes de tijolos fortes, na sua argamassa, provavelmente ainda com óleo de baleia, como era naquele tempo".

A fala mansa do ministro passa a destacar, com a ênfase possível em uma voz rouca, a ligação do povo brasileiro com a África. Que começa com a congada, apresentada momentos antes do discurso.

"Eu vi aqui os meninos que poderiam ser alemães ou austríacos, aqui na congada. Eles são herdeiros da tradição africana. A congada aqui apresentada pelos violeiros vem de outra tradição, a tradição ibérica! A Espanha, as civilizações mouras, que durante setecentos anos ajudaram a civilizar aquela Espanha da Europa. Ali, nas mãos do violeiro! Este é o nosso Brasil: mundo tão conturbado, mas tão belo, nessa vida tão difícil mas tão rica, ao mesmo tempo".

O ministro resmunga uma vez mais com a imprensa, que lhe perguntou, na entrada, o que ele veio fazer em Piracicaba. Sua resposta à repórter: "O que eu venho fazer? Venho trabalhar!"

As palmas reapareceriam após uma pequena lição de música. Gil pede ao trompetista o significado teórico das primeiras fases musicais do Hino. Após cantarolar as frases, com o músico ao trompete, Gil declara: "Eu fui basicamente um músico intuitivo. Aprendi pela prática, sei muito pouca teoria musical". E explica: "A introdução do Hino Nacional é um conjunto de fusas, misturado com um conjunto de colcheias, e semicolcheias, e etc, e etc."

Para deleite do respeitável público, arremata: "Este talvez seja o mais belo dos Hinos Nacionais que nós temos nas nações do mundo!"

Dando início aos finalmentes, Gil empossa o Conselho Municipal de Cultura e se despede, cercado por sua equipe de trabalho, guardas municipais, imprensa e público em geral. Artistas plásticos querem entregar quadros. Mulheres querem uma entrevista informal a jato. E um rapaz, que ouvira, sim, o último CD do ministro, grita para todo mundo ouvir, inclusive a autoridade em questão: "Aê, Gil! É BOB MARLEY, cara!"

Encerrada a peleja, Piracicaba volta ao normal. Menos aqueles nativos que não conseguiram um autógrafo de Gil, e o amaldiçoariam pelo resto da vida.

2 comentários:

Célia disse...

TROPICALISMO!! Vivi intensamente essa fase em Sampa, Érico! Ainda estudante, passeatas sem fim pela Pr. da República, Lgo do Arouche e adjacências eram nosso palco! Ao meu ver, a melhor atitude do Gil foi retirar-se da política desgastada como vivemos. Não o entenderam e jamais o consolidariam como tal. Intuitivíssimo ele o é até hoje!
Parabéns pelo resgate do seu artigo. Muito bom!
Abraço, Célia.

Carla Ceres disse...

O Gil é um amor de pessoa, Érico. Há quase 30 anos, ele me deu um autógrafo e me salvou de um elevador onde fiquei presa. Depois ele e outras moças de meu grupo entraram no elevador e ficamos todos presos juntos. O Gil foi destravando o elevador de andar a andar, enquanto conversava com a gente, na maior calma e simpatia. Gostei do seu texto. Beijos!