30 de jul. de 2010

Animais!

O texto a seguir saiu numa página de humor que eu editava no jornal Tribuna Piracicabana, de 2001 a 2003. Outros textos dessa época você confere no Releituras, um site-referência da literatura no Brasil, editado por meu amigo Arnaldo Nogueira Jr.

O elefante e o rinoceronte não se bicavam.

O elefante achava que seu grito, "fuóóóóó", existia para alertar os bichos de injustiças, desmandos, falta de ética e outros penduricalhos que servem pra gente dizer que está revoltado.

O rinoceronte, pelo contrário, achava que sua simples presença servia para mostrar aos bichos quem é que mandava naquela birosca, que esse negócio de injustiças e desmandos e falta de ética era denúncia vazia, talvez coisa daqueles passarinhos caga-sebo — ou caga-regras? — , doidos para ver o circo pegar fogo, uma palhaçada.

Vendo que a coisa iria degringolar e alguns bichos inocentes pagariam pela animosidade da paquidérmica dupla brigona, o tucano resolveu chamá-los para uma prosa conciliatória. Disse que os senhores elefante e rinoceronte poderiam decidir suas diferenças à vista de todos os "habitantos" da floresta. Que não valeria soco abaixo da linha da cintura, que resolvessem a contenda, pois estava em jogo o equilíbrio ecológico do mundo e outros patatis-patatás de uma conversa do gênero. Bom diplomata que era, o tucano ficou aliviado e espalhou a boa nova ao respeitável público.

Quando chegou o grande dia da batalha entre o elefante-ofegante e o rinoceronte-mastodonte, a floresta mobilizou-se para o espetáculo. Uns apostavam no ofegante, outros no mastodonte, os mais velhos olhavam aquilo com tédio, as macacas de auditório gritavam como nunca.

Preparados os competidores, o tucano deu o tiro que matou a ansiedade da platéia e iniciou o embate. Um urro se ouviu, o elefante achou que o tiro do tucano tinha saído pela culatra, e estava certo. O leão, que dormia, acordou danado da vida com o barulho e acabou com a festa. E foi aí que os dois competidores caíram na real... ou melhor, viram quem é que era o legítimo, o verdadeiro, o autêntico rei da cocada preta.

(A)moral: quem tem o rei na barriga sempre perde a majestade

5 de jul. de 2010

Professores e alunos do humor

Em 2011, completo vinte anos de carreira. E o Salão de Humor de Piracicaba é uma lembrança permanente desde os anos 80.

Minhas primeiras visitas ao evento aconteceram ainda no Teatro Municipal. Numa delas, vi pela primeira vez um exemplar do Pasquim, em sua versão paulistana. Na mostra principal, nomes como Luigi Rocco e Ronaldo Cunha Dias estavam todo ano entre os cartunistas selecionados. O primeiro, aliás, se casaria com uma piracicabana. Essa cidade tem visgo mesmo.

De 1989 pra cá, fui alimentando o desejo de virar cartunista. No mesmo ano, fui aluno da Oficina de Quadrinhos de Jal e Gual, organizadores do Troféu HQMix. Em 1991, virei profissional da área. Depois, o namoro com o evento aumentou.

O entrosamento com outros cartunistas na cidade gerou mostras paralelas no Salão, de um grupo chamado Pamonhas de Piracicaba. O nome, depois rechaçado por um ou outro membro mais mal-humorado do grupo, só confirmou o óbvio: pamonha de casa não faz milagre.

Após ser selecionado algumas vezes para a mostra principal, ser jurado de seleção e organizar uma mostra de tiras feitas pelos ex-Pamonhas, o Salão de Humor me deu a chance de dar aulas de humor gráfico para professores das redes municipal e estadual de ensino de Piracicaba. Esse conhecimento está sendo repassado aos alunos para que participem do Salãozinho de Humor, uma versão infanto-juvenil do evento, já na oitava edição.

Na oficina, ministrada junto à artista plástica e arte-educadora Belê, as professoras-alunas demostraram uma vontade imensa de absorver e interagir com a linguagem do humor.

É um desafio, para as alunas e para os professores, destrinchar, feito um frango caipira, os mistérios do humor em cartum, charge, caricatura e tira. Mas a teoria harmonizou-se com a prática, gerando exercícios de criação muito interesantes. E engraçados!

O que era um aprendizado informal do humor, por meio do contato anual com o Salão, torna-se um aprendizado sistemático, por meio das oficinas agora promovidas com frequência pelo próprio evento, para crianças e adultos.

A satisfação de ser escolhido para repassar esse conhecimento, como cartunista "formado" pelo Salão, não poderia ser maior. Que o riso continue forte e saudável, entre as novas e as velhas gerações.

3 de jul. de 2010

A mulher que eu amo (ou amava?)

Eu admiro a coragem do Roberto Carlos. Ia dizer que aprecio a cara de pau dele, mas não é essa a expressão. É "coragem" mesmo.

Pra começar, ele sobreviveu a cinquenta anos de carreira. Popstar que se preze ou morre no meio do caminho e vira mito - vide Michael Jackson, Elvis Presley e Paulo Sérgio - ou sobrevive à roda-viva, envelhecendo em público sem pudor das rugas da voz e da alma. Roberto, desnecessário dizer, escolheu a segunda alternativa.

Que coragem!

Antes de ser Jovem Guarda, nosso Rei tentou ser Bossa Nova, sendo imediatamente rejeitado pelos mauricinhos da Zona Sul carioca. Até gravou aquele disco "Louco por você", uma salada de sub-bossas, quase-rocks e anti-versões. O cantor considera sua estréia em LP ruim por um detalhe pequeno: a desafinação numa das faixas. E engavetou o vinilzão.

Mais coragem pro currículo.

Depois do sucesso da Jovem Guarda, onde enfiava ouvidos abaixo das menininhas o acompanhamento vagabundo daquele órgão pilotado por Lafayette, dando aos seus rocks e baladas uma vestimenta de música de igreja no domingo, o cantor virou adulto.

Rasgando a voz, feito um sub-negão da Motown, resolveu incorporar suíngue à sua música, na trilha da moda dos nascentes anos 70. Isso antes de virar um romântico incorrigível e duradouro, com pitadas de fé explícita, bem antes dos padres-cantores gravarem seus discos.

Haja coragem!

E coragem é o que me motivou a escrever algumas linhas sobre a mais nova canção de Roberto Carlos, divulgada na novela das nove da Globo, Viver a Vida.

A canção se chama "A mulher que eu amo", de autoria somente do cantor. A música saiu no CD da trilha sonora da novela, foi liberada para download pago em alguns sites e ganhou as avenidas da web.

Percorri as tais avenidas e conheci "A mulher que eu amo". Conheci a música, não a mulher da música.

Como os fãs de Roberto Carlos devem saber, a mulher que a tal letra descreve e exalta só pode ser a falecida esposa dele. É sabido que o cantor tem composto exaltações sem fim à finada, e que reforçou esse sentimento para além da arte, nas entrevistas concedidas após o trágico desenlace.

E a canção só reforça a minha opinião sobre a coragem de Roberto Carlos. Exaltar uma mulher falecida usando verbos no presente não é pra qualquer um. Como também não deve ser fácil ser Roberto Carlos em tempo integral. Mas isso vocês já sabiam.

De qualquer forma, o Rei ainda não perdeu a majestade. E a coragem.