26 de out. de 2010

Chuvas, relâmpagos, trovoadas e enchentes

Tirando alguns comentários esparsos e mal-humorados no Twitter, ando evitando falar de campanha presidencial neste blog. Porque não adianta se manifestar quando todo mundo quer ter razão na base da falta de razão.

Nesta segunda-feira que passou, houve o penúltimo debate do segundo turno das eleições para presidente. Mais uns dias e teremos uma nova pessoa a ocupar a cadeira tão cobiçada a cada quatro anos.

A tira desta postagem não passa de uma ilustração amena do clima tempestuoso que tomou conta dessa campanha. Entre chuvas e trovoadas, espero que o Brasil se salve.

19 de out. de 2010

Perotti, inesquecível

Sabe aquelas coisas que a gente se lembra que parecem folclore, e não são? Uma delas, no meu caso, foi um certo Sujismundo. Assim como um dia houve o boi da cara preta que pegava as meninas com medo de careta, o Sujismundo era lembrado como o cara que as crianças não seriam caso tomassem aquele banho de todo santo dia.

Sujismundo foi uma espécie de Cascão adulto, estrela de pequenas animações encomendadas pelo governo brasileiro nos anos 70. Os desenhos protagonizados pelo personagem, de cabeça grande e sujeira maior ainda, compunham uma campanha de saúde pública de alcance nacional.

Só fui saber que Sujismundo existiu no imaginário verdeamarelo, para além dos temores que as mamães zelosas infiltravam nas cabecinhas de seus filhinhos, ao conhecer seu criador Ruy Perotti Barbosa.

Natural de Valença, cidade do estado do Rio de Janeiro que também deu ao mundo a violonista Maria Rosa Canellas (ou Rosinha de Valença), Perotti deu o ar de sua graça em Piracicaba, cidade onde nasci e sou cartunista, nos anos 90 do século passado. Esteve numa escola de desenho, a convite de seu proprietário, para um curso especial de criação de histórias em quadrinhos, com duração de três meses.

Naquela altura, Ruy Perotti era dono de um vasto currículo. Tinha sido sócio da Lynxfilm, estúdio de animação que produziu os primeiros desenhos animados de Mauricio de Sousa para o extrato de tomate Elefante, além de criar o Sujismundo para a campanha citada acima. Nos anos 70, dirigiu o núcleo de revistas infantis da editora Abril, onde aproveitou para veicular seus gibis do diabo Satanésio e do macaco Gabola. Fico imaginando se hoje a Abril teria peito pra bancar um gibi cujo personagem principal era um diabo... Claro que Anjoca acabava sempre dando um jeito de neutralizar as diabruras do Satanésio, mas o público jogou água na fervura, e Satanésio foi cancelado após poucas edições em banca.

Poucos anos antes do curso em Piracicaba, o criador do diabinho dera forma ao Variguinho, avião-mascote da Varig, para animações na TV e gibis de banca. A ligação de Perotti com a Varig já vinha de longa data, com os comerciais animados do Seu Cabral, Urashima Taro e Dom Quixote, criados para a empresa nos já distantes anos 60.

Nos três meses de convivência com o multifacetado artista e animador, a seriedade dos conceitos do velho Perotti no décimo-quarto andar da escola era equilibrada pelos risos bonachões nos almoços no térreo após as aulas. Careca, bigode tingido de preto, baixote e barrigudo, parecia o avô severo que todo neto adora esperar o momento certo pra esculhambar.

A tal esculhambação veio ao fim das aulas, quando apresentamos projetos completos de personagens e histórias criadas como conclusão do curso. Inventei uma turma de bichos falantes liderada pelo coelho Sobral, um lenhador metido a machão. Na série de tiras, a única coisa que Sobral derrubou foi a resistência do porco Ferraz, um guarda-florestal aboiolado que se derretia pelo coelho. A floresta só não virava cinzas por causa da vigilância do pingüim Doutor Tóim, espécie de patrão e pai do porquinho.

As tiras da turma do coelho Sobral foram as primeiras que inventei de forma mais conscientemente planejada, graças aos ensinamentos de Ruy Perotti. Uma das melhores lembranças que tenho dessa fase foram as gargalhadas dele ao ouvir minha descrição do porquinho Ferraz. “Um porquinho bicha!” E morria de rir. Ao me recordar disso para a redação destas linhas, não consigo evitar as lágrimas, que vieram quando soube da morte do artista anos depois das nossas aulas em Piracicaba.

O bonachão que criou figuras queridas do imaginário nacional pode ter sido uma figura folclórica para o autor destas maldigitadas, mas existiu de fato e de direito na vida dos brasileiros, e ainda bem.

18 de out. de 2010

Guilherme Arantes

Há pouco tempo, fiz um relato sobre a visita de Eumir Deodato a Piracicaba. A provar que gosto dos caras do piano popular brasileiro, voltei a ouvir a obra do Guilherme Arantes. E lembrei que já bati um papo com ele aqui na minha cidade. Ou melhor, ele é que bateu um papo comigo. Como bom leonino, Arantes gosta de ter a palavra final num diálogo. A palavra inicial também.


O texto sobre Guilherme Arantes, assim como o de Deodato, saíram no jornal Tribuna Piracicabana. Como o jornal não tinha site em fevereiro de 2005, data de publicação do relato sobre Arantes, o texto segue abaixo. Também fiz uma caricatura do compositor na ocasião, essa que está na postagem.

Militante verde, artista maduro

Às vésperas dos 30 anos de carreira, o compositor Guilherme Arantes solta o verbo contra as gravadoras e defende a causa ecológica



O ruído de piano bate-estaca invade a boate fechada. Lá fora, moças de ingresso à mão soltam gritinhos na porta do recinto. Em dez minutos, o tecladista termina de passar o som do instrumento, sentando-se a uma mesa de canto. Ele e sua equipe jogam alguma conversa fora e goles de bebida goela dentro, antes de uma conversa a dois entre um fã e o artista. Sem rodeios, Guilherme Arantes dá seu recado antes de subir ao palco em Piracicaba, no último sábado de setembro de 2004.



Na década de 80, o artista dava shows em ginásios esportivos, época sem as gigantescas salas de espetáculo hoje predominantes no eixo Rio-São Paulo. A onda daqueles anos era o pop-rock brasileiro, embora o artista não se considere um roqueiro. “Nos anos 80 houve uma bolha de consumo de classe média, uma faixa de público jovem, por força do Plano Cruzado”. Apresentava-se com banda, outros músicos junto. Com a tecnologia atual, faz suas apresentações sozinho: ele e o teclado com arranjos programados e som de voz e piano ao vivo.



O público de um show espera os sucessos acumulados na carreira do artista, mas a visão de Guilherme sobre essa expectativa vai na contramão. “Você tem que olhar uma carreira num conjunto, numa perspectiva... A minha competitividade, com o passar do tempo e da idade, vai diminuindo. Eu não tenho condições, nem obrigação de emplacar sucessos, de virar o Midas da música.” Ele prossegue cortante. “Sucesso é uma palavra muito desgastada. O pessoal do ‘Big Brother’ é sucesso...”. Sinal dos tempos. Nem todo sucesso vem com selo ISO 9000.



Apesar de ter dezenas de canções no coração das platéias, Guilherme não se sentia prestigiado pelos colegas de ofício, ao menos no início de sua caminhada nos anos 70. Em tempo de ditadura militar e censura pesada, compositores engajados como Ivan Lins e Gonzaguinha tinham prestígio, não sucesso. Guilherme tinha sucesso e zero de prestígio. Elis Regina o ajudou, pedindo ao compositor uma canção inédita, Vivendo e aprendendo a jogar, novo hit. Com Planeta Água, segundo lugar no Festival de Música da TV Globo de 1981, veio a consagração definitiva. Apesar do sucesso, do posterior prestígio, Guilherme seguiu sua trilha sonora ao passo da intuição. “As coisas foram acontecendo naturalmente. Eu não fui um bom estrategista. A gente acaba fazendo a carreira em cima da nossa personalidade. Eu tô no meu ambiente”.



As chateações, no entanto, não terminaram. “Hoje me acusam muito de estar fora da mídia. E tem o reverso da moeda, de quem fica muito tempo exposto, depois fica a cobrança de que você tá esquecido”. De antenas ligadas, sem fazer do umbigo o seu mundo, Guilherme traça um retrato do mercado e antevê suas transformações. “O mercado do produto fonográfico está morto! O mercado do futuro é o show ao vivo, aonde você não pode ser clonado”. E segue em frente, em direção ao futuro. “O produto digital subverteu toda uma estrutura industrial que existia. A tendência é que a informação seja uma commodity de acesso livre e gratuito”.


Artista experiente, 30 anos de carreira em 2006, Guilherme começou no tempo do disco de vinil, um suporte físico incopiável. Nessa época, pirata tinha olho de vidro e cara de mau. Hoje, tem cara de camelô. As gravadoras, por sua vez, têm a cara no chão. A indústria cultural brasileira, na opinião do compositor, foi pega desprevenida com as mudanças tecnológicas. “O que garantia o faturamento da indústria era o controle da venda, a oligopolização dos pontos de distribuição. Quando comecei a minha carreira, havia 3000 lojas de disco no país, hoje há 120”.

Outras situações a temer, o compositor aponta. "A grande ameaça será a de uma invasão subterrânea, de nossos recursos hídricos e de biodiversidade." As soluções para a bizarrice ecológica, porém, começam a chegar, com os projetos de replantio de manguezais, em conjunto com a Marinha e o Exército. Uma prática inédita no país, feita pelo Instituto Planeta Água, ONG que o músico mantém no interior da Bahia. "O ambientalismo é um braço do pensamento de esquerda, que tem reservas quanto à participação das Forças Armadas na causa ambiental: isso é um erro. Num futuro próximo, as Forças Armadas atuarão pesadamente na proteção ambiental do Brasil".

A conversa segue por outros terrenos pantanosos. O poder econômico, que garante a permanência das duplas sertanejas na mídia. A corrupção dos espaços da mídia, que garantem a sobrevivência dos gêneros musicais corrompidos. A falta de democratização dos espaços, uma falta de responsabilidade com o público. Guilherme cita o Caetano Veloso de antigamente para falar do hoje. "Ele só consegue ser o mito que é hoje porque fez aquele discurso no Festival, nos anos 60: ‘Vocês não sabem nada, vocês não entendem de estética!’ Porque ele bateu de frente com a preferência da época, que era cuspir a novidade e ficar na mesmice". E os espaços, o que ficaram? "Existia o espaço para o Caetano fazer essa crítica, o espaço da discordância. Com a evolução da mídia para a aferição constante da audiência, para o atendimento dos anseios do público, perdem-se os espaços críticos dentro da mídia".

Para sociedade doente, embalagem bonitinha e vazia. O compositor denuncia um fenômeno que atinge não somente produtos musicais. "Isso acontece em vários setores industriais. Você tem remédios de larga vendagem que não têm efeito nenhum. Grandes sucessos de venda de produtos inócuos." Nem tudo é apocalipse, porém. Maria Rita, filha de Elis, é citada pelo músico para sinalizar o que, em sua opinião, o mercado fonográfico está fazendo em prol do respeito ao ouvido alheio - e do faturamento, claro, que gravadora nunca foi instituição de caridade. "As gravadoras estão aplicando grandes quantias em marketing para artistas que apresentam baixo pirateamento, voltados ao público adulto contemporâneo, como Maria Rita". Nesse contexto, adeus duplas sertanejas! "Uma dupla nova, iria custar muito caro pra gravadora lançar e fazer estourar na mídia, deixa de ser bom negócio, ela será campeã de disco pirata".

Boa, a conversa. Mas o show tem que continuar. Ou melhor, começar. Guilherme vai ao hotel se vestir. E o fã-repórter vai para casa transcrever as fitas do papo. Solitário e solidário, o artista vai defendendo sua arte e sua integridade humanista, ao alcance do respeitável público sobrevivente na selva.

12 de out. de 2010

Crianças


Depois de uma certa idade, a gente se vê cercado de crianças por todos os lados. No caso deste que vos escreve, até que o cerco começou cedo.

Não, não tive filhos ainda. É que comecei a desenhar com quinze anos, trabalhando para um jornal. Ilustrava um suplemento infantil. De vez em quando, aparecia um bando de crianças, levada por professores, para visitar a redação. Eu, mais criança ainda, desenhava coelhinhos e demais espécimes animais para a criançada de plantão.

Anos depois, já devidamente chutado do jornal, e fazendo caricaturas num evento, topei com uma dessas crianças no estande em que eu estava. Não mais criança, é claro, mas veio me dizer que foi uma das visitantes que ganhou um coelho rabiscado daquela época. Abracei o cara, agradecendo pela lembrança.

Mais uns meses, e fui chamado pra fazer caricaturas numa multinacional, adivinha por quem: pelo ex-garoto, agora trabalhando na empresa.

Hoje, se não tenho crianças de própria criação me cercando, tento recuperar algo desse espírito lúdico, que muitas vezes não deixa de ser espírito de porco, ao lado dos filhos de amigos. E dos dois sobrinhos, especialistas em me fazer sorrir nas horas mais impróprias. Ou próprias, já que eles me fazer perceber que não existe sorriso impróprio.

6 de out. de 2010

O alívio dos bolhas

Assim como a cachaça faz as vezes de divã dos mais necessitados, o plástico-bolha faz as vezes de calmante dos pobres de marré-de-si. Ou dos mais necessitados, que seja.

Se a cachaça tem um efeito relaxante mas faz seu consumidor deixar aflorar uma emoção nunca dantes conhecida, a ponto de fazer o cidadão declarar amor desmedido pelos amigos e demais seres humanos dispostos a contê-lo, o plástico-bolha só faz seu usuário relaxar, sem danos morais a quem o cerca.

No contato com as bolinhas de ar prestes a serem espremidas, feito cravos rebeldes de adolescentes idem, o cidadão estressado da labuta diária que inclui brigas no trânsito, brigas com o chefe no trabalho, brigas com o cachorro, os filhos e a mulher no dulcíssimo lar, realiza uma eficiente sessão de relaxamento.

Se a função original do plástico-bolha por décadas a fio continua sendo a de embalar produtos mais frágeis que um cachorro poodle perdido numa tempestade, cabe aos milhões de usuários do plástico expressarem gratidão aos seus inventores: deixando-se embalar pelo alívio que a explosão das bolinhas traz aos consumidores.

Mas, como nem tudo na vida é alívio, o plástico-bolha, assim como a cachaça supracitada, pode produzir dependência. Portanto, trate de explodir as bolinhas com moderação. As bolinhas do plástico, seu bolha.