O celular toca. Tocar é apelido. Ele berra. Não é um ringtone com a canção do gás. Não é a canção de ninar que anestesia seu sono madrugadeiro. É o barulho-padrão, entre tantos barulhos-padrão, oferecidos de brinde na memória do aparelho. E você puxa pela memória. É o som que você mesmo programou para lhe acordar.
O remédio é acordar. A vítima do som-celular dorme de sono próprio, sem sono-tarja-preta. A tarja-preta imaginária é a dos olhos, relutantes em abrir. Vem uma coceirinha ali, um bocejo acolá. A lembrança do pesadelo que o fez arrebentar o estrado da cama se dissipa. O dia começa. O sol nasce para todos, com ou sem celular gritalhão.
A porta do banheiro bate com o estrondo de um elefante embriagado. A escova de dentes está lá, toda amigona, esperando a aplicação da pasta bucal, toda espumosa. Nos cantos mais insuspeitos do céu da boca, a sua, o fio dental cumpre a função que cabe a ele: eliminar lembranças de jantares passados. O fiapo de manga, por exemplo, incomoda até agora.
Pensamentos retidos são eliminados no primeiro esvaziamento diário de bexiga. Tal eliminação urinária provocará queixas femininas. Haverá investigação dos respingos em locais impensáveis pela mente do respingador. A limpeza de corpo e alma tem sua conclusão na chuveirada ensaboada, na retirada da barba indesejada, no enxágue das dobrinhas, na tolha enrolada no corpo em direção ao quarto. E no rastro respingado pelo corredor.
Escolhe-se a roupa para encarar o trabalho provedor do leite infantil. Seleciona-se o sapato que poderá sapatear diante do chefe intransigente. Toma-se o café que o deixará com hálito justificador de pedido de divórcio. Tranca-se a casa, pigarreia-se com a fumaça do escapamento do automóvel. Portão da casa fechado, e a história continua no lugar onde o Judas perdeu as botas, local de trabalho do nosso personagem motorizado.
O dia do dileto trabalhador acaba, antes que o chefe acabe com o subordinado. O estresse é tanto, que o lar-doce-lar é um perigo para o estressado, diabético em potencial. Mas ele nem sabe da possibilidade da moléstia, porque não faz exame médico periódico. Saúde equilibrada é uma doce ilusão.
Na chegada à choupana, tudo o que nosso personagem quer é comer qualquer coisa, vestir qualquer coisa, assistir qualquer coisa. Porém, o celular, em sintonia plena com o desejo de paz mundial, emite uma boa vibração. É a convocação da namorada saudosa. O trabalhador suspira, imaginando uma noite daquelas de arranhar parede.
A noite termina, a madrugada avança, o berro seguinte do celular alerta o cidadão para o cumprimento de seus deveres diários. Os deveres profissionais. Os deveres conjugais da noite passada ele deixou na coluna dos haveres. Pelo menos até a noite seguinte. Ou a namorada seguinte.
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