18 de out. de 2010

Guilherme Arantes

Há pouco tempo, fiz um relato sobre a visita de Eumir Deodato a Piracicaba. A provar que gosto dos caras do piano popular brasileiro, voltei a ouvir a obra do Guilherme Arantes. E lembrei que já bati um papo com ele aqui na minha cidade. Ou melhor, ele é que bateu um papo comigo. Como bom leonino, Arantes gosta de ter a palavra final num diálogo. A palavra inicial também.


O texto sobre Guilherme Arantes, assim como o de Deodato, saíram no jornal Tribuna Piracicabana. Como o jornal não tinha site em fevereiro de 2005, data de publicação do relato sobre Arantes, o texto segue abaixo. Também fiz uma caricatura do compositor na ocasião, essa que está na postagem.

Militante verde, artista maduro

Às vésperas dos 30 anos de carreira, o compositor Guilherme Arantes solta o verbo contra as gravadoras e defende a causa ecológica



O ruído de piano bate-estaca invade a boate fechada. Lá fora, moças de ingresso à mão soltam gritinhos na porta do recinto. Em dez minutos, o tecladista termina de passar o som do instrumento, sentando-se a uma mesa de canto. Ele e sua equipe jogam alguma conversa fora e goles de bebida goela dentro, antes de uma conversa a dois entre um fã e o artista. Sem rodeios, Guilherme Arantes dá seu recado antes de subir ao palco em Piracicaba, no último sábado de setembro de 2004.



Na década de 80, o artista dava shows em ginásios esportivos, época sem as gigantescas salas de espetáculo hoje predominantes no eixo Rio-São Paulo. A onda daqueles anos era o pop-rock brasileiro, embora o artista não se considere um roqueiro. “Nos anos 80 houve uma bolha de consumo de classe média, uma faixa de público jovem, por força do Plano Cruzado”. Apresentava-se com banda, outros músicos junto. Com a tecnologia atual, faz suas apresentações sozinho: ele e o teclado com arranjos programados e som de voz e piano ao vivo.



O público de um show espera os sucessos acumulados na carreira do artista, mas a visão de Guilherme sobre essa expectativa vai na contramão. “Você tem que olhar uma carreira num conjunto, numa perspectiva... A minha competitividade, com o passar do tempo e da idade, vai diminuindo. Eu não tenho condições, nem obrigação de emplacar sucessos, de virar o Midas da música.” Ele prossegue cortante. “Sucesso é uma palavra muito desgastada. O pessoal do ‘Big Brother’ é sucesso...”. Sinal dos tempos. Nem todo sucesso vem com selo ISO 9000.



Apesar de ter dezenas de canções no coração das platéias, Guilherme não se sentia prestigiado pelos colegas de ofício, ao menos no início de sua caminhada nos anos 70. Em tempo de ditadura militar e censura pesada, compositores engajados como Ivan Lins e Gonzaguinha tinham prestígio, não sucesso. Guilherme tinha sucesso e zero de prestígio. Elis Regina o ajudou, pedindo ao compositor uma canção inédita, Vivendo e aprendendo a jogar, novo hit. Com Planeta Água, segundo lugar no Festival de Música da TV Globo de 1981, veio a consagração definitiva. Apesar do sucesso, do posterior prestígio, Guilherme seguiu sua trilha sonora ao passo da intuição. “As coisas foram acontecendo naturalmente. Eu não fui um bom estrategista. A gente acaba fazendo a carreira em cima da nossa personalidade. Eu tô no meu ambiente”.



As chateações, no entanto, não terminaram. “Hoje me acusam muito de estar fora da mídia. E tem o reverso da moeda, de quem fica muito tempo exposto, depois fica a cobrança de que você tá esquecido”. De antenas ligadas, sem fazer do umbigo o seu mundo, Guilherme traça um retrato do mercado e antevê suas transformações. “O mercado do produto fonográfico está morto! O mercado do futuro é o show ao vivo, aonde você não pode ser clonado”. E segue em frente, em direção ao futuro. “O produto digital subverteu toda uma estrutura industrial que existia. A tendência é que a informação seja uma commodity de acesso livre e gratuito”.


Artista experiente, 30 anos de carreira em 2006, Guilherme começou no tempo do disco de vinil, um suporte físico incopiável. Nessa época, pirata tinha olho de vidro e cara de mau. Hoje, tem cara de camelô. As gravadoras, por sua vez, têm a cara no chão. A indústria cultural brasileira, na opinião do compositor, foi pega desprevenida com as mudanças tecnológicas. “O que garantia o faturamento da indústria era o controle da venda, a oligopolização dos pontos de distribuição. Quando comecei a minha carreira, havia 3000 lojas de disco no país, hoje há 120”.

Outras situações a temer, o compositor aponta. "A grande ameaça será a de uma invasão subterrânea, de nossos recursos hídricos e de biodiversidade." As soluções para a bizarrice ecológica, porém, começam a chegar, com os projetos de replantio de manguezais, em conjunto com a Marinha e o Exército. Uma prática inédita no país, feita pelo Instituto Planeta Água, ONG que o músico mantém no interior da Bahia. "O ambientalismo é um braço do pensamento de esquerda, que tem reservas quanto à participação das Forças Armadas na causa ambiental: isso é um erro. Num futuro próximo, as Forças Armadas atuarão pesadamente na proteção ambiental do Brasil".

A conversa segue por outros terrenos pantanosos. O poder econômico, que garante a permanência das duplas sertanejas na mídia. A corrupção dos espaços da mídia, que garantem a sobrevivência dos gêneros musicais corrompidos. A falta de democratização dos espaços, uma falta de responsabilidade com o público. Guilherme cita o Caetano Veloso de antigamente para falar do hoje. "Ele só consegue ser o mito que é hoje porque fez aquele discurso no Festival, nos anos 60: ‘Vocês não sabem nada, vocês não entendem de estética!’ Porque ele bateu de frente com a preferência da época, que era cuspir a novidade e ficar na mesmice". E os espaços, o que ficaram? "Existia o espaço para o Caetano fazer essa crítica, o espaço da discordância. Com a evolução da mídia para a aferição constante da audiência, para o atendimento dos anseios do público, perdem-se os espaços críticos dentro da mídia".

Para sociedade doente, embalagem bonitinha e vazia. O compositor denuncia um fenômeno que atinge não somente produtos musicais. "Isso acontece em vários setores industriais. Você tem remédios de larga vendagem que não têm efeito nenhum. Grandes sucessos de venda de produtos inócuos." Nem tudo é apocalipse, porém. Maria Rita, filha de Elis, é citada pelo músico para sinalizar o que, em sua opinião, o mercado fonográfico está fazendo em prol do respeito ao ouvido alheio - e do faturamento, claro, que gravadora nunca foi instituição de caridade. "As gravadoras estão aplicando grandes quantias em marketing para artistas que apresentam baixo pirateamento, voltados ao público adulto contemporâneo, como Maria Rita". Nesse contexto, adeus duplas sertanejas! "Uma dupla nova, iria custar muito caro pra gravadora lançar e fazer estourar na mídia, deixa de ser bom negócio, ela será campeã de disco pirata".

Boa, a conversa. Mas o show tem que continuar. Ou melhor, começar. Guilherme vai ao hotel se vestir. E o fã-repórter vai para casa transcrever as fitas do papo. Solitário e solidário, o artista vai defendendo sua arte e sua integridade humanista, ao alcance do respeitável público sobrevivente na selva.

2 comentários:

LAUDO FERREIRA disse...

Muito bom texto sobre o grande Guilherme Arantes. Tá aí um artista que foi de certa forma, colocado de lado e relegado à categoria de artista "menor". Grande compositor, grande arranjador e grande criador de melodias, além de grande figura.

Érico San Juan disse...

E ainda há quem chame o Arantes de brega, Laudo... Vê se pode (ou IPod?)