Dia após dia, Deus empresta seus ouvidos às preces de fiéis espalhados pelo planeta Terra. Já o padre Marcelo Rossi deve ter ficado de orelhas em pé com os recordes de vendagem de seus CDs nos últimos anos do século vinte. Antes, é claro, da aparição de um concorrente de peso: o padre-galã Fábio de Melo.
O novo livro do padre Marcelo, Ágape (“Amor” em grego), teve lançamento no ginásio de esportes de um colégio tradicional de Piracicaba, no interior de São Paulo. A maratona de autógrafos aconteceu dois dias após o último feriado de quinze de novembro. As viagens para lançamentos semelhantes em outras cidades devem acontecer em seguida.
Para este pobre pecador que vos digita neste instante, a busca de informações sobre o lançamento do livro começou com um telefonema ao número impresso nos cartazes de divulgação. Uma voz cavernosa, provavelmente emitida das profundezas do inferno, reagiu mal à pergunta sobre um provável papo com o padre, num horário alternativo ao dos autógrafos. Depois do “não” curto e grosso, seguido de um telefone desligado na cara da voz resmungona, este peregrino que vos escreve marchou rumo ao ginásio.
Numa avenida próxima ao Rio Piracicaba, sob um sol de fazer corar um padre de pedra, a entrada do evento estava tomada por funcionários da livraria responsável pelo lançamento. Senhoras perguntavam o preço da obra do padre e ali mesmo assinavam cheques de vinte reais, o valor de cada exemplar do livro.
Seguranças de ternos sombrios e caras idem espalhavam-se por todo o ambiente do evento, tomado por cadeiras de plástico, dessas comuns em praias e churrascos de fim de semana. Uniformizadas de branco, morenas e loiras sorridentes cumprimentavam os passantes, cada um com seu livro na mão.
O respeitável público, ocupante da maioria das quatrocentas cadeiras do recinto, era composto por mulheres da “melhor idade” e seus acompanhantes. Nos fundos do ginásio, embaixo da tabela de basquete e ao lado da saída de emergência, um banner-outdoor trazia o anúncio do livro do padre Marcelo. Numa pose compenetrada para a foto do banner, olhando para o Altíssimo, o religioso parecia mesmo é olhar para a frase do anúncio: “Ágape, um livro que fala ao coração”.
A obra teve sua redação iniciada num momento delicado para o pregador: após uma cirurgia e o período de recuperação. Nesse período, o padre chegou a aparecer na televisão de cadeira de rodas, amolecendo o coração de quem se acostumou a vê-lo em suas saltitantes pregações. Recuperado, o religioso concluiu o livro, com interpretações pessoais para salmos do Evangelho de São João.
Se o padre Marcelo teve uma santa paciência para se recuperar, os compradores de Ágape usaram do mesmo recurso para encarar a longa espera por um autógrafo. A vigília não abafou o eco das discretas vozes em desencontro por todo o ginásio. Próximas à arquibancada, ladeando o canto esquerdo do local, os fãs aguardavam o momento do contato com o autor. Atrás das últimas almas da fila, um segurança zelava pela paz do senhor. Que vinha a ser o senhor sentado à mesa de caneta em punho, assinando, conversando e abençoando.
Examinado o ambiente, o peregrino que vos relata quis usar a saída de emergência sem se fazer notar, já que não havia comprado o Ágape. Uma moça envelopada com um blazer barrou a retirada: “Já autografou seu livro?” Diante do meu “não” curto e fino, a vigilante fez cara de censura, mas liberou a saída. Deus lhe pague, meu anjo!
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