Não dá pé comprar sozinho tênis ou sapato. Porque é um ato equivalente a pisar no calo do humor do dia. Mas tudo bem: ou vai pra sapataria, ou o tênis se desfaz no meio da rua. O negócio é encarar a tarefa.
Pisando duro, o candidato à gentileza pré-fabricada dos vendedores entra na sapataria. Despistando três ou quatro sorrisos solícitos, o consumidor vai à vitrine, imbuído da prerrogativa máxima da pessoa que depositará seus suados tostões no caixa da loja ("O cliente sempre tem razão").
O futuro dono de um novo calçado examina a variedade imensa de tênis à sua disposição. Tênis coloridos, tênis esportivos, tênis que brilham no escuro. Tênis tão fofos quanto um coala. Tênis com design arrojado. Tênis lindamente frágeis, desses que não resistiriam a uma inocente marcha no parque mais próximo. Tênis que resistem a uma corrida de São Silvestre, mas feios que doem. E que talvez façam doer a joanete.
Mas o calcanhar de Aquiles do consumidor rebelde talvez seja a frase-padrão do vendedor: "Posso ajudar?" Pode, sim, é claro. Sempre pode. Só que consumidores seguros de si vão em caminho contrário às pretensões de um atendente. Tênis sem graça e barato, além de um caixa sem filas, é o desejo ardente do consumidor. Tênis caros, coloridos feito um arco-íris psicodélico, são o desejo do balconista.
Após algumas escolhas na vitrine, e outras que o vendedor precisa ir ao estoque para atender, mira-se o olhar na cadeira estofada mais próxima. Na sequência de cadeiras, sempre tem uma criança birrenta acompanhada da mãe. Sempre tem uma pilha de calçados e caixas. E sempre tem uma certa espera lógica pela volta da vendedora. Que deve estar bufando de raiva pelo pedido. Porque fica evidente que os tênis escolhidos pelo comprador são aqueles do canto mais escuro e longínquo do estoque.
A etapa seguinte da provação é a que pode comprometer a credibilidade do comprador: o chulé. Não há convenção social, nem convivência harmoniosa entre povos, nem tolerãncia mútua circunstancial, que façam uma pessoa não ter seu nariz ofendido pelo odor de pés descuidados. Para evitar tamanho descalabro, existem talcos e sprays. Mas quem disse que a pessoa lembrou de proteger dedos e solas? Pior que isso, só o esquecimento de aparar as unhas. E sempre o pior-ainda se sobrepõe ao menos-pior.
Ainda bem que o pior um dia passa. Tênis sem graça escolhido, pagamento feito, saída pela esquerda. Em poucos meses, nova compra será feita, para alegria da economia do país. Em nome da minha economia, o que fiz mesmo foi adquirir um calçado sem grife, sem cor e sem pisca-pisca.
Mas deixa estar. Na esquina mais próxima, uma piscada pisca-alerta atenta para o óbvio: faltou comprar uns pares de meias. E a corrida de volta à loja é feita de imediato. Com velocidade digna dos quenianos campeões da São Silvestre.
2 comentários:
vendedores solícitos. quem aguenta? abs.
Isso é um calvário... Compro virtualmente... mais tranquilo.
[ ] Célia.
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